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05/01/2010

EU SEI QUE A GENTE SE ACOSTUMA...



A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.

A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Fonte: COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. RJ: Editora Rocco, 1996.


29 comentários:

Ana Cristina Cattete Quevedo disse...

Norma, infelizmente a gente se acostuma também ao que não deveria.
Deixa de ouvir o pássaro a tua janela porque esta a ler o jornal.
Deixa de ver a flor no asfalto porque está de olho no onibus que passa.

Mas acho que as vezes a gente se acostuma com certas coisas para nos proteger de alguma dor. E deixa, assim, de viver. Só sobrevive. E isso não é Vida!

Tem uma frase que gosto muito: "Já foi dito que o tempo cura todas as feridas... Não concordo. A ferida continua. Com o tempo, a mente se protege da insanidade cobrindo a ferida com cicatrizes, e a dor diminui, mas nunca desaparece." Rose Kennedy

E se a ferida continua, esqueçamos dela! Ela estará lá, a nos lembrar de dores de outrora.
Deixemos a dor de lado e vejamos o pássaro e a flor.
Acho de maior valor.
Pelo menos assim o penso.

Beijo

=)

angela disse...

Um texto amargo, que tira toda a graça de uma vida pobre.
beijos

Norma Villares disse...

Angela é para reflexão. Chama atenção para a MESMICE, e que muitos não se dá conta.
Beijinhos

Norma Villares disse...

Ana Cristina é isso mesmo. Não deveríamos acostumar, mas acostumamos.
Sair desta repetição terrível, sacodir a poeira e andar pra frente.
Beijinhos

Psiquismo Desmistificado disse...

Olá minha amiga!!
Que bom nos reencontrarmos nesse novo ano que se inicia.
Fico feliz que tenha gostado do post "Crer de fato".
E acho que tem uma relação interessante com seu post ( que por sinal é excelente ).
A gente se acostuma tanto com tudo, a gente passa a viver a mesmice e o conformismo e sem uma vigilância constante de nossas crenças e nossa fé pode ficar tudo em segundo plano.
Um grande e fraternal abraço

Pena disse...

Oh, Linda Amiga:
Um belo texto sobre a nossa condição humana que existe e vive.
Parabéns sinceros. É Excelente!
Possui um carácter GIGANTE de uma pessoa de bem. Uma autêntica lição sobre a existência de todos nós.
Adorei. Fabuloso.
Beijinhos amigos de respeito e agradecimento pela visita linda.
Sempre a admirá-la

pena

Bem-Haja, perfeita amiga.

Marcos Takata disse...

Olá minha amiga, estive em Salvador, mas não te encontrei.
Este texto é muito forte mesmo, para acordar para vida.
É verdade repetimos muitos o mesmo padrão. E o pior acostumamos.
Bijus

Marcos Takata disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hugo Cheng disse...

Olá amiga Norma
Marina Colasantti tem como forte esta temática. Muitas vezes estamos perdidos na vida diária, que nem perguntamos a nóis mesmo se estamos apenas acostumados.
Muito bom fazer reflexões.
Bjs

Cristina Fernandes disse...

Um texto cheio de encanto, pois as pequenas coisas guardam o melhor de cada um de nós.
Obrigado pela visita e palas palavras.
Um beijo
Chris

Anônimo disse...

Norma querida! Acostumar-se, conformar-se... Certa vez me disseram acerca de minha deficiência q eu tinha q me conformar. Aff... Conformar-me? Impossível! Possível é superar e olhar de um novo ângulo, mas me conformar e me acostumar, impossível.
Bjos na alma!

Norma Villares disse...

Reyel que maravilha de depoimento. É isto mesmo, superar limites é a meta.
Muito obrigada pela visita e comentário.
Um grande abraço

Norma Villares disse...

Com certeza Hugo, é muito forte. Como disse Reyel acostumar é conformar.
Obrigada bom amigo.
Um grande abraço

Norma Villares disse...

Marcos que bom que gostou do texto. E vocês estão certíssimos na análise.
Grande abraço

Norma Villares disse...

Cris, tem estes encantos de chamar atenção para o CONFORMISMO. Obrigada pela visita e comentário.
Abraços

Norma Villares disse...

PENA é neste fato a importância do texto. O ser humano tem uma condição de conformar-se sempre.
Abraços

Norma Villares disse...

Psiquismo que bom que veio nos visitar.
Este seu comentário dá um post. è isso mesmo, sem revisão das cRENÇAS obsoletas e limitantes. Muito bom.
Abraços

Jorge disse...

Norma,
Somos animais rotineiros. Novidade é um risco para nosso equilíbrio.
Pautamos a vida pelo medo. Nos acostumamos a tudo pelo medo de ser feliz. Num mudo como está, como posso ser feliz? Esquecemos de nós mesmos. É uma proteção.
Quanto ao temp que cura, acredito que cura sim, mas não sendo passivos. Temos que fazer a nossa parte para que o tempo faça o dle.

Norma, um beijo, sempre de coração,
Jorge

Pelos caminhos da vida. disse...

E nos acomodamos tb.

Bom dia!

beijooo.

Norma Villares disse...

Pelkos caminhos da vida muito obrigada pela visita e comentário. Nos acomodamos e arrastamos este PESO anos a fio. ESte texto diz: Você não necessita mais de arrastar estes pesos. Mude. Resignifique.
Um grande abraço afetuoso

Norma Villares disse...

Jorge meu bom amigo, muito obrigada pela vista e comentário.

Somos mesmo animais rotineiros. Se aparecer uma novidade ficamos com medo. É isto mesmo Jorge.
Paz e Luz!
Abraços afeutosos

Elizabeth disse...

Oi Amiga,
Este texto é bem verdadeiro, muito bonito mesmo, obrigada.
Beijo na testa.

Viveka disse...

Olá amiga
Esta postagem serve para mostrar como acostumamos com as construções que fizemos na vida e que não servem mais.
Muito bom para iniciar o ano, jogando fora o lixo.
Namasté
Beijinhos

Peregrina da Luz disse...

Olá boa amiga Norma,
Seres rotineiros sempre se acostumam, este é um grande e grave problema.
Buscar o equilíbrio e caminhar para realizar mudanças é a meta.
Beijinhos

Blogat disse...

Sofrendo,por mêdo de sofrer...e sem se dar conta do sofrimento.Só muita coragem e consciência para romper essa "roda".
Ótima reflexão.Bj Alice

Sônia Silvino (CRAZY ABOUT BLOGS) disse...

Norma!
A gente se conforma muito facilmente, talvez por ser mais cômodo do que promover mudanças!
Bjkas, minha amiga!

Anônimo disse...

Mudanças e sair da Zona de conforto .....é sempre bom olhar o horizonte e seguir!!!
Belo texto e obrigada pela visita e adorei suas palavras vieram em um bom momento...sempre seguindo e fluindo a energia...
Forte abraço
By

Unknown disse...

Norminha, querida!
Essa eu ja' conhecia de muito tempo, mas nunca e' demais relembrar, porque a gente acaba se acostumando a tentas coisas que nunca devia... e como!!!
Mas podemos mudar... sempre que quisermos!
Que acha?
Beijos, flores e muitos sorrisos!

Maroca disse...

Namaste
Norma amiga,
Nada como a meditação e reflexão com estas reflexões.
Não devíamos, mas acostumamos mesmo
Beijos no coração

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