"Seis dias depois do terremoto, Roger continuava diante das ruínas do prédio onde estava sua mulher, Jeanette, em Porto Príncipe. Não é possível alcançar, só podemos tentar vestir a pele do homem diante do monte de pedras. Debaixo delas, está a mulher que ama. Para todos, morta. Para ele, viva. Roger grita o nome de Jeanette. Diante de tantas dezenas de milhares de mortes, seu drama era apenas mais um. Mas não existe mais um. Existe o mundo inteiro em cada um. A vida só faz sentido se o homem com o os olhos vermelhos fixos nas pedras for ele e todos nós.
De repente, alguém ouve um barulho. Uma voz entre os escombros.
“Ela está viva!”, grita Roger. Agora, há um pequeno buraco. O repórter da TV americana enfia por ele um microfone para falar com Jeanette. Ela não come há seis dias, não bebe água há seis dias, não se move há seis dias. Enterrada viva, há seis dias Jeanette respira com dificuldade na escuridão. Tem os dedos da mão quebrados, sente dor.
Jeanette tem algo a dizer.
O que ela diz? Ela manda um recado para Roger: “Eu te amo muito.
Nunca se esqueça disso!”.
Roger pega o que parece ser um pedaço de ferro da estrutura do prédio e começa a cavar. Fiquei tentando abarcar o que é cavar pedras com um pedaço de ferro, com as mãos, para retirar dali um amor. Acho que não cheguei nem perto. O que faz meu coração falhar uma batida, para além da tragédia, é o que Jeanette escolhe dizer a um minuto da morte. O que importa a ela registrar depois de seis dias soterrada, 144 horas, 8.640 minutos, cada um deles eterno. Tudo o que importa para Jeanette, que não sabe se vai sobreviver, é afirmar seu amor ao homem que ama. Diante da morte, esta era a frase de uma vida.
Este pequeno drama, um entre dezenas de milhares, explica por que, contra todas as catástrofes, a escravidão e os sucessivos abusos cometidos pelas potências de cada época, a exploração e a violência, as bolachas de lama, as tantas misérias, a falta de tudo, o Haiti vai sobreviver. Mesmo sem quase nada, Jeanette e seu povo ainda tem o que perder.
O que você diria se fosse Jeanette?
A história de Roger e Jeanette nos remete ao que dá sentido à vida. Ao que realmente importa para cada um de nós. Soterrada pelas ruínas do seu país, a haitiana Jeanette ensina o mundo inteiro. Não porque quer nos dar alguma lição, mas porque Jeanette é, inteira, ainda que aos pedaços em meio aos cacos simbólicos e reais de um povo, de uma nação.
Como repórter, já escutei sobreviventes das mais diversas tragédias, ou apenas diante da catástrofe inescapável que é o fim da nossa história quando a vida chega ao fim. Ninguém sente saudades do momento em que teve seus 15 minutos de fama ou brilhou em algum palco ou ganhou um aumento de salário ou foi chefe de alguma coisa ou botou um peito turbinado ou emagreceu seis quilos ou comprou uma casa ou um carro zero ou uma TV de tela plana. Diante do momento-limite, somos levados não aos grandes bens ou aos grandes planos, mas aos detalhes cotidianos que em geral passam despercebidos, quase esquecidos em nossa pressa rumo às grandes aspirações. O que nos falta é aquilo que nos preenche a cada dia sem que nos demos conta. Aquilo para o qual, em geral, não temos tempo.
Será que é preciso quase morrer para lembrar de viver?
Nem sempre há uma segunda chance. Sem saber se teria uma, Jeanette nos lembra, com seu recado muito particular, daquilo que é universal. Seja você uma moradora do país mais pobre das Américas nos escombros de um terremoto, seja você um bombeiro de Los Angeles, como aqueles que tentavam resgatá-la, seja você uma brasileira que escreve sobre ela, como eu, ou um brasileiro que lê este texto, como você. Jeanette nos lembra que o que nos iguala em nossa condição humana é o que, de fato, faz diferença. Pelo buraco, ela nos lembra que a vida é sempre urgente.
A vida é para hoje, a vida é para já.
Depois de três horas, Jeanette foi arrancada dos escombros. Viva. Saiu de lá cantando uma música cuja letra dizia: “não tenha medo da morte”. Assim que emerge das ruínas, logo depois de receber os primeiros-socorros, Jeanette entra no carro de Roger e parte. Bem empoeirada, sem nenhum drama. Como se tivesse resvalado na calçada e machucado a mão num dia qualquer. E o marido lhe desse uma carona para casa. Como boa sobrevivente, Jeanette reinventa a normalidade.
De novo, Jeanette tem algo a nos ensinar. Ela sacode a poeira e parte rumo ao cotidiano porque a vida tem de continuar, a vida deve se impor. É possível seguir quando, mesmo nos sentindo aos pedaços, sabemos o que é essencial, o que realmente importa, o que faz nosso coração bater mais
rápido. No caso de Jeanette, o seu amor por Roger. E, mesmo se Roger faltasse, acredito que Jeanette ainda assim deixaria as pedras para trás e partiria rumo a muitos recomeços, porque só ama o outro com esta inteireza quem ama muito a vida que é.
Jeanette nos ensina que mais triste que a morte é uma vida desperdiçada com aquilo que não importa.
Se você ainda não assistiu, vale muito a pena testemunhar o resgate de Jeanette, veja o vídeo.
* Eliane Brum é repórter especial de Revista ÉPOCA, integra a equipe da revista desde 2000. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de Jornalismo. É autora de 'A Vida Que Ninguém Vê' (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e 'O Olho da Rua' (Globo).
Vale a pena amar e ser amada!
De repente, alguém ouve um barulho. Uma voz entre os escombros.
“Ela está viva!”, grita Roger. Agora, há um pequeno buraco. O repórter da TV americana enfia por ele um microfone para falar com Jeanette. Ela não come há seis dias, não bebe água há seis dias, não se move há seis dias. Enterrada viva, há seis dias Jeanette respira com dificuldade na escuridão. Tem os dedos da mão quebrados, sente dor.
Jeanette tem algo a dizer.
O que ela diz? Ela manda um recado para Roger: “Eu te amo muito.
Nunca se esqueça disso!”.
Roger pega o que parece ser um pedaço de ferro da estrutura do prédio e começa a cavar. Fiquei tentando abarcar o que é cavar pedras com um pedaço de ferro, com as mãos, para retirar dali um amor. Acho que não cheguei nem perto. O que faz meu coração falhar uma batida, para além da tragédia, é o que Jeanette escolhe dizer a um minuto da morte. O que importa a ela registrar depois de seis dias soterrada, 144 horas, 8.640 minutos, cada um deles eterno. Tudo o que importa para Jeanette, que não sabe se vai sobreviver, é afirmar seu amor ao homem que ama. Diante da morte, esta era a frase de uma vida.
Este pequeno drama, um entre dezenas de milhares, explica por que, contra todas as catástrofes, a escravidão e os sucessivos abusos cometidos pelas potências de cada época, a exploração e a violência, as bolachas de lama, as tantas misérias, a falta de tudo, o Haiti vai sobreviver. Mesmo sem quase nada, Jeanette e seu povo ainda tem o que perder.
O que você diria se fosse Jeanette?
A história de Roger e Jeanette nos remete ao que dá sentido à vida. Ao que realmente importa para cada um de nós. Soterrada pelas ruínas do seu país, a haitiana Jeanette ensina o mundo inteiro. Não porque quer nos dar alguma lição, mas porque Jeanette é, inteira, ainda que aos pedaços em meio aos cacos simbólicos e reais de um povo, de uma nação.
Como repórter, já escutei sobreviventes das mais diversas tragédias, ou apenas diante da catástrofe inescapável que é o fim da nossa história quando a vida chega ao fim. Ninguém sente saudades do momento em que teve seus 15 minutos de fama ou brilhou em algum palco ou ganhou um aumento de salário ou foi chefe de alguma coisa ou botou um peito turbinado ou emagreceu seis quilos ou comprou uma casa ou um carro zero ou uma TV de tela plana. Diante do momento-limite, somos levados não aos grandes bens ou aos grandes planos, mas aos detalhes cotidianos que em geral passam despercebidos, quase esquecidos em nossa pressa rumo às grandes aspirações. O que nos falta é aquilo que nos preenche a cada dia sem que nos demos conta. Aquilo para o qual, em geral, não temos tempo.
Será que é preciso quase morrer para lembrar de viver?
Nem sempre há uma segunda chance. Sem saber se teria uma, Jeanette nos lembra, com seu recado muito particular, daquilo que é universal. Seja você uma moradora do país mais pobre das Américas nos escombros de um terremoto, seja você um bombeiro de Los Angeles, como aqueles que tentavam resgatá-la, seja você uma brasileira que escreve sobre ela, como eu, ou um brasileiro que lê este texto, como você. Jeanette nos lembra que o que nos iguala em nossa condição humana é o que, de fato, faz diferença. Pelo buraco, ela nos lembra que a vida é sempre urgente.
A vida é para hoje, a vida é para já.
Depois de três horas, Jeanette foi arrancada dos escombros. Viva. Saiu de lá cantando uma música cuja letra dizia: “não tenha medo da morte”. Assim que emerge das ruínas, logo depois de receber os primeiros-socorros, Jeanette entra no carro de Roger e parte. Bem empoeirada, sem nenhum drama. Como se tivesse resvalado na calçada e machucado a mão num dia qualquer. E o marido lhe desse uma carona para casa. Como boa sobrevivente, Jeanette reinventa a normalidade.
De novo, Jeanette tem algo a nos ensinar. Ela sacode a poeira e parte rumo ao cotidiano porque a vida tem de continuar, a vida deve se impor. É possível seguir quando, mesmo nos sentindo aos pedaços, sabemos o que é essencial, o que realmente importa, o que faz nosso coração bater mais
rápido. No caso de Jeanette, o seu amor por Roger. E, mesmo se Roger faltasse, acredito que Jeanette ainda assim deixaria as pedras para trás e partiria rumo a muitos recomeços, porque só ama o outro com esta inteireza quem ama muito a vida que é.
Jeanette nos ensina que mais triste que a morte é uma vida desperdiçada com aquilo que não importa.
Se você ainda não assistiu, vale muito a pena testemunhar o resgate de Jeanette, veja o vídeo.
* Eliane Brum é repórter especial de Revista ÉPOCA, integra a equipe da revista desde 2000. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de Jornalismo. É autora de 'A Vida Que Ninguém Vê' (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e 'O Olho da Rua' (Globo).
Vale a pena amar e ser amada!
15 comentários:
Norma, eu ainda não tinha assistido!
Muito emocionante.
As vezes nossos pequenos dramas do cotidiano nos impede de ver que temos tantas chances desperdiçadas de recomeçar.
Há de se ter olhos para ver...
Beijo :)
Ana Cristina, muito obrigada pela visita e comentário.
Sim, é emocionante essa história, e de como vencer e transpor o impossível. Essa mulher Jeanette ficou 7 dias sem água e sem comida. Muito forte.
Abraços afetuosos
Oi Amiga,
Fantástico!
Beijo.
Norma,
A grandeza de uma pessoa está no quanto ama.
É por demais emocionante. Do que o ser humano é capaz, da sua força moral mesmo que numa tragédia. Que exemplo de vida!!!
Norma, parabéns pelo post!
E estou levando mais este!!!!
Beijo, com amor, o teu coração!!!
Jorge
Norma,eu tb segui de perto esse resgate e realmente foi um milagre o que aconteceu com essa moça!Conseguir sobreviver depois de tantos dias,mas ele tinha certeza de que ela estava viva,porque a amava.Quem ama,sempre sabe!Lindo seu texto!Parabéns!Bjs,
Impressionante,o amor opera milagres.
Beijos e bom fds.
Conmovedor y emocionante. Cuántas historias habrán vivido estos hermanos innumerables, tan golpeados por las desgracias. Muy buen post. Un abrazo
Norma
Lindo post, não tinha visto ainda e é emocionante. Podendo de uma passada no blog http://miradaanterior.blogspot.com/ e veja o poema que Missosso postou sobre o amor "Ninguém manda no amor". Tem tudo a ver com essa situação.
beijos
Norma
Gosto de boa literatura, pelo pelo que apreciei o importante texto que trouxeste.
O teu aparecimento no meu LISBOA CAFÉ aconteceu numa altura en que o mesmo vai ser editado. Dentro de dias, depois de uma revisão do autor, será postado o prefácio do livro.
Beijos
Daniel
Oh, Estimada e Doce Amiguinha:
Delicioso e terno, o que escreveu.
Possui uma sensibilidade de ouro puro.
"...tudo o que importa para Jeanette, que não sabe se vai sobreviver, é afirmar seu amor ao homem que ama. Diante da morte, esta era a frase de uma vida..."
Tem razão. E, perde-mo-nos nós em futilidades.
Temos bem presente o espírito do amor entre dois seres humanos imensos.
Adorei.
Fabuloso.
Beijinhos amigos.
Escreve com brilhantismo.
Já registei.
Sempre a admirá-la e a respeitá-la.
pena
Excelente, amiga.
Bem-Haja!
Tierno , emocionante y conmovedor rescate. He llorado de emoción. No puedo decir más. Un abrazo inmenso.
Emocionante sim, e que lição nos dá, me sinto tão pequenina diante de tanto altruísmo, atitude de quem ama muito, mas não só o marido, ela ama o mundo, beijos Luconi
Querida amiga.
Linda esta história.
O tempo é curto mas o amor eterno.
Penso nas pessoas soterradas pelo desamor e que morrerão sem sentir a força deste sentimento de modo pleno.
Penso neste rapaz e comó a vida foi generosa com ele, ao lhe dar um amor assim.
Que estejas sempre do lado dos sonhos.
Muito obrigada querida amiga Márcia,
O amor é universal e precisamos praticá-lo.
Grande a afetuoso abraço
Muito obrigada poeta Aluisio,
O amor é necessário para uma vida de alegrias.
Vamos paticá-lo.
Grande a afetuoso abraço
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